Por
João Abel de Freitas,
Economista
O Ocidente está em perda lenta e cada vez tem mais dificuldades em trabalhar com os países do Sul Global. A UE, com as suas divisões internas, com relevo para a energia, não ganha peso específico.
Os BRICS surgem da confluência de um (re)sentimento comum, profundo e alargado do Sul Global, o de que os países do Ocidente se conjugam para lhes vedar espaço e condições de participação na governação política do Planeta nos termos em que entendem ser seu direito.
Nas suas três configurações até agora (quatro países primeiro, depois cinco e 11 a partir de 1 de Janeiro de 2024), os BRICS sempre foram constituídos por países muito heterogéneos, diferentes em quase tudo, na ideologia, economia, sistema e organização política, graduação de posicionamento e de contestação face ao Ocidente.
Apesar disso, têm desenvolvido iniciativas conjuntas e até apresentam obra, pelo menos um Banco de Investimento (NDB, com sede em Xangai), a funcionar bem e a cimentar-se na concessão de empréstimos de investimento aos países emergentes, na base de princípios específicos que o distinguem do Banco Mundial (BM), o banco da ONU.
Recuando no tempo, há a registar mudanças substanciais nas suas relações bilaterais. Por exemplo, a China/Estados Unidos tiveram um período de proximidade na colaboração económica coincidindo com conflitos gravosos, ideológicos, entre a China/Rússia (URSS) e, caso bem mais recente, Arábia Saudita/Irão, em que nem relações diplomáticas havia.
Houve e haverá sempre múltiplos domínios de não afinidade e de discordância pública, não camuflada, entre os BRICS. Para além dos graus de desenvolvimento diferenciado e até do diferente nível de participação da China e Rússia em Instituições da ONU, estes alguns dos exemplos que tipificam dificuldades intrínsecas de peso.
Até que ponto, estas dificuldades poderão traduzir-se em efeitos críticos ou agravarem-se agora com o alargamento?
O travão mestre de desinteligências consequentes tem sido o diálogo e a diplomacia persistentes, a não ingerência interna no país de cada membro e, de algum modo, a estruturação informal de funcionamento também tem facilitado. Toda esta complexidade acarreta dificuldades nas decisões, arrastando-as até à obtenção de consensos.
Os BRICS em dificuldade
São sobejamente conhecidos os problemas de fronteira entre a China e a Índia e até entre a China e a Rússia, presentemente atenuados, devido ao estado de graça existente. Muito recentemente, a China divulgou o seu mapa-padrão de fronteiras que veio acicatar uma série de contestações em vários países vizinhos, entre eles, a Índia.
Em tudo isto há muito de histórico e de situação real no terreno ocupado há vários anos. Em certos casos, faz lembrar Olivença (direito português sobre território, gerido e ocupado por Espanha) mas com mais conflitualidade.
Problemas deste teor agravam-se quando se sabe haver uma competição subjacente pela liderança do Sul Global. China e Índia disputam esse terreno. Quaisquer fagulhas ateiam o fogo. Na disputa pela liderança do Sul Global, há muitos trunfos na mesa.
A China dispõe de estruturas consolidadas e investimentos bem espalhados, quem não conhece a nova rota da seda e os respectivos efeitos e a sua grande penetração em África, para além de uma rede diplomática consistente.
A Índia apresenta maiores potencialidades de crescimento, tendências demográficas facilitadoras e um apoio do Ocidente nesta disputa. A análise da Cimeira do G20 (9 e 10 de Setembro último) mostra bem o que se afirma.
A competição apresenta-se aguerrida e as dificuldades de a gerir, de um lado e do outro, conciliando-a com o avanço e entendimento do trabalho no seio dos BRICS torna-se um processo bem complexo, tanto mais agora com 11 países-membros e outros importantes na porta de entrada.
Esta situação requere que os BRICS tenham de montar uma estrutura inovadora e eficiente mais formal, muito digitalizada com órgãos de Gestão para várias áreas, provavelmente bem descentralizada. Bem será que não caiam na armadilha de criar “máquinas” pesadas e burocráticas, tipo União Europeia ou ONU.
Na 15ª Cimeira na África do Sul, em quase todas as intervenções se afirmou que os BRICS continuarão fiéis aos princípios de origem: aprofundamento da cooperação económica, comercial e financeira, para impulsionar o desenvolvimento económico e adesão à equidade e justiça para melhorar a governação mundial.
Xi Jinping, na sua intervenção, avançou cinco ideias-base para um desenvolvimento a prazo de alta qualidade dos BRICS:
Uma cooperação pragmática nos setores da economia digital, desenvolvimento sustentável e cadeia de abastecimentos.
Parques de novas incubadoras de inovação científica e novas plataformas para a utilização dos dados dos satélites, com o objetivo de impulsionar e facilitar a cooperação entre os países membros dos BRICS.
Reforço da cooperação da segurança política, pois a segurança é um pré-requisito para o desenvolvimento.
Alargar a cooperação na educação com realce para o ensino profissional, ensino digital e trocas culturais.
Aproveitar o potencial do Novo Banco de Desenvolvimento, para acelerar o surgimento de uma nova ordem financeira internacional, mais equilibrada e inclusiva, na prática de um verdadeiro multilateralismo.
Posições do Ocidente
Várias são as teses. Extremando-as, há quem anteveja o prosseguimento dos BRICS em posição “zombie”, enquanto outros apontam para o seu reforço no xadrez político mundial.
Para Jim O’Neill, o criador do acrónimo BRIC (2001), o então economista chefe do Banco Goldman Sachs, a situação apresenta-se complexa. Para ele, o Ocidente perdeu uma oportunidade de “bloquear” o aumento da influência do peso dos BRICS quando apontou para a reforma do FMI (BRICS 15% dos votos) para dar o peso devido à China, que tinha tido um papel preponderante na resolução da crise financeira asiática de 1997/8. Trump, entretanto, boicotou o processo e Biden faz o mesmo. Agora no G20 fala do tema, sem apontar nada de concreto.
Jim O’Neill diz que, perante esta situação, é natural que as economias emergentes se entendam para exigir mudanças, embora reconhecendo que os avanços nos BRICS têm sido lentos devido, sobretudo, à conflitualidade China/Índia (o principal travão de um percurso mais dinâmico). O Ocidente começa a mostrar inquietude com a existência deste grupo de países, sobretudo com os alargamentos futuros.
Como muitos analistas comentam, o Ocidente está em perda lenta, apresentando cada vez mais dificuldades em trabalhar com os países do Sul Global, e a União Europeia com as suas divisões internas, em vários domínios, com relevo para a energia, não ganha peso específico e apresenta-se como o maior perdedor. O caso de França em África é o exemplo cabal e até há quem veja nisso uma mãozinha (luta por matérias-primas) dos EUA.
Porém, não há dúvidas: a rivalidade China/Índia e o seu (des)entendimento constituirão um dos elementos mais determinantes do percurso futuro da geopolítica mundial.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
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