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sábado, 27 de fevereiro de 2010

SITUAÇÃO DRAMÁTICA NA MADEIRA (XI)

O mundo da política e dos negócios tem falado sempre mais alto que a defesa das populações!
Não tenho por hábito comentar artigos de opinião, pelo simples facto de respeitar pontos de vista distintos. É assim que se constrói a Democracia, porque os posicionamentos distintos possibilitam novas leituras de processo, de resto sempre importantes na construção do futuro colectivo. Hoje, porém, fiquei perplexo ao ler um texto do Engº Pedro Ferreira, presidente do Conselho de Administração da Sociedade Metropolitana de Desenvolvimento. Aliás, por razões várias, apesar de não sermos pessoas próximas, sempre tive pelo Engº Pedro Ferreira enorme consideração, o que não obsta que olhe para a sua opinião, hoje publicada, a propósito do catástrofe que se abateu sobre a Madeira, com um olhar muito crítico.
Ora bem, é que os comentários publicados, também por especialistas, apontando erros estratégicos em algumas opções políticas, não se enquadram nesse pressuposto quadro "zandinga", ao jeito de profetas da desgraça. Não, Caro Engº Pedro Ferreira, não li e não ouvi um único comentário de pessoas que não tenham um passado científico sobre estas questões, de sistemáticos alertas no quadro de uma cultura de risco que está muito para além de uma cultura inauguracionista. Depois, questiono, afinal, quem são os especialistas em quem devemos acreditar, admirar e seguir? Apenas os que fazem parte dos quadros políticos do governo regional ou existem também muitos outros, académicos, investigadores, organizações não governamentais, ambientalistas, enfim, credíveis pessoas da sociedade, cujos posicionamentos merecem séria reflexão? Estaremos numa sociedade de uns e dos outros, dos bons e dos maus, dos compreensivos e dos intolerantes, ou constitui um ponto de partida de bom senso, ouvir, reflectir e aproveitar os vários pontos de vista sobre o mesmo assunto? Quem analisa de forma diferente terá de partir para "outras terras", como é sugerido?
Discordo. Até porque os considerados "zandingas" da nossa terra, os tais "ignorantes e pequenos", ao contrário do outro que, por subsistência, enveredou pela carreira de vidente, desta vez, infelizmente, acertaram em cheio. Os seus alertas (propostas) que, sublinho, nunca tiveram por objectivo impedir este tipo de catástrofes, mas atenuar e minimizar as suas consequências, concretizaram-se, o que coloca em maus lençóis muitas das políticas seguidas pelo governo e pelas próprias Sociedades de Desenvolvimento. E é certamente isto que custa ouvir.
Ainda hoje recebi uma mensagem com um texto do engenheiro silvicultor Cecílio Gomes da Silva, publicado no DN de 13 de Janeiro de 1985, subordinado ao título: "Eu tive um sonho". Desse texto transcrevo a seguinte parte:
"(...) Olhei para o Sul e qualquer coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. De onde me encontrava via-os transformarem-se numa só torrente de lama, pedras e detritos de toda a ordem. A Ribeira de Santa Luzia, bloqueada por alturas da Ponte Nova - um elevado monturo de pedras, plantas, arames e toda a ordem de entulho fez de tampão ao reduzido canal formado pelas muralhas da Rua 31 de Janeiro e da Rua 5 de Outubro - galgou para um e outro lado em ondas alterosas vermelho acastanhadas, arrasando todos os quarteirões entre a Rua dos Ferreiros na margem direita e a Rua das Hortas na margem esquerda. As águas efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas, tudo cobriram até à Sé - único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. A Ribeira de João Gomes quase não saiu do seu leito até alturas do Campo da Barca; aí, porém, chocando com as águas vindas da Ribeira de Santa Luzia, soltou pela margem esquerda formando um vasto leito que ia desaguar no Campo Almirante Reis junto ao Forte de S. Tiago. A Ribeira de S. João, interrompida por alturas da Cabouqueira fez da Rua da Carreira o seu novo leito que, transbordando, tudo arrasou até à Avenida Arriaga. Um tumultuoso lençol espumante de lama ia dos pés do Infante D. Henrique à muralha do Forte de S. Tiago. O mar em fúria disputava a terra com as ribeiras. Recordo-me de ver três ilhas no meio daquele turbilhão imenso: o Palácio de S. Lourenço, A torre da Sé e a fortaleza de S. Tiago. Tudo o mais tinha desaparecido - só água lamacenta em turbilhões devastadores. (...) Oxalá que nunca se diga que sou profeta. Mas as condições para a concretização do pesadelo existem em grau mais do que suficiente. (...) Estão criadas todas as condições, a montante e a jusante para uma tragédia de dimensões imprevisíveis".
O Engº Cecílio Gomes da Silva não foi um dos "Zandingas". Também alertou, só que o mundo da política e dos interesses económicos fala mais alto que a segurança das populações. É ou não verdade, Caríssimo Engº Pedro Ferreira?
Ilustração: Google Imagens.

2 comentários:

João Aluvião disse...

Para saber que vão continuar a existir aliviões na Madeira não são precisos Zandingas.
É a catastrofe por excelência da Madeira (noutros locais são os terramotos, os ciclones, a neve, os tsunamis, a guerra, as doenças).
Houve e haverá sempre.
E teremos sempre que aguentar com eles.
Em 1803 terão morrido 600 pessoas. Não consta que a construção civil exercia pressão na cidade e que as ribeiras estavam estranguladas.
Sem prejuizo de ser necessário não sermos estúpidos e de querer manter os erros cometidos.
Mas também a "esquerda" madeirense terá que fazer o seu acto de contrição pois farta-se de ir para as zonas altas motivar à manutenção dos ali residentes. Exigindo infraestruturas de suporte à construção (a maioria ilegal) que ali continua a florescer ao invés de procurar que aqueles optem por vir residir para os sítios correctos.
Não concorda?

André Escórcio disse...

Agradeço o seu comentário.
Não concordo. Começo pelo fim. Quando fala da "esquerda" tenho que lhe referir que nos vários programas eleitorais que elaborei, de candidatura à Câmara do Funchal, consta sempre a designação de "uma operação integrada de desenvolvimento nas zonas altas, de contenção e requalificação". Nunca apoiei a construção espontânea e sempre neguei o apoio em materiais para terminar habitações em zonas de risco.
Depois, o problema que se coloca não é o de evitar a fúria da natureza, mas o de minimizar os danos. E isso é possível. Ainda esta manhã, um amigo lembrava-me que, Canárias, foi fustigado por temporais e, no entanto, não foram além dos danos materiais. É essa cultura de risco que nos falta.
Poderá dizer-me que a orografia de Canárias é diferente. Pois, para condições como as nossas maiores deveriam ser as preocupações de luta contra o risco. Só quem anda por aí fora sabe do que estou a falar, isto é, de uma clara ausência de ordenamento do território, capaz de atenuar os problemas que, ciclicamente, enfrentamos.
Uma vez mais obrigado pelo seu comentário. É sempre bom discutirmos pontos de vista diferentes.