"A constatação e a razão do Manifesto 70 é essa: mesmo pagando o equivalente a um serviço nacional de saúde por ano não se chega ao objectivo da dívida. Quase metade do aumento da dívida nos últimos anos deve-se ao efeito dos juros. É precisa uma viragem profunda. Essa viragem é a reestruturação da dívida, que tenha como objectivo reduzir drasticamente a perda económica, abatendo o desperdício da austeridade, para poder em contrapartida libertar recursos para os utilizar em criação de emprego e investimento. Reorganizar o sistema de crédito ou proteger o sistema de segurança social, ambos credores do Estado, é naturalmente elementar. Renegociar com os outros credores internacionais é mais difícil. Exige conflitos e mediações. Exige sensatez e propostas sustentáveis. Exige parceiros. Mas exige sobretudo não continuar a perder tempo. E, se perdermos tempo, já só restarão soluções muito mais drásticas". - Um artigo do Doutor Francisco Louçã.
Os quatro tipos de resposta ao Manifesto 70 revelam bem o que vai na sociedade portuguesa e para onde temos que ir.
Em primeiro lugar, veio a autoridade: o texto foi criticado pelo primeiro-ministro, furioso com a assinatura de ex-ministros das finanças de governos da sua cor, a mesma crítica foi repetida pela Comissão Europeia, pelo FMI e pelos editoriais dos dois jornais económicos, o Presidente despachou os dois assessores que tinham assinado, os partidos da maioria fizeram conferências de imprensa e lamuriaram-se no parlamento, e até um ministro júnior da Irlanda foi recrutado para comentar o assunto. Os drs. Pangloss, felizes que eles são, acreditam que tudo vai bem e não podia ir melhor.
Em segundo lugar veio o salamaleque ao manifesto pela reestruturação da dívida. O PS concorda com alguma coisa, desde que essa coisa não seja a reestruturação que o manifesto propõe. Francisco Assis está de acordo, mas reestruturação nem falar.
Em terceiro lugar vieram os catálogos, que se limitam a repetir a invectiva e a elaboram em vários registos, imitando o estilo apreciado e inconfundível de Camilo Lourenço:
1) o registo do “caladinho, que eles se zangam”: “Conseguem perceber que, na hipótese absurda de o Governo pedir agora uma reestruturação da nossa dívida, os juros no mercado secundário iriam aumentar imediatamente e deitar a perder mais de três anos de austeridade necessária e incontornável para recuperar a confiança dos investidores?” (Gomes Ferreira); ou “O uso da palavra reestruturação é o primeiro erro, colossal por sinal. Basta referir este termo para os investidores fugirem de tal modo que obrigaria a um novo resgate” (Vieira Pereira).
2) o registo do “agora é que não se fala disso para não incomodar os senhores”: “Permitam-me uma pergunta simples e direta: Vocês pensaram bem no momento e nas consequências da vossa proposta, feita a menos de dois meses do anúncio do modo de saída do programa de assistência internacional?” (Gomes Ferreira).
3) o registo do “deixem isto para quem sabe”: “Que tal deixarem para a geração seguinte a tarefa de resolver os problemas gravíssimos que vocês lhes deixaram? É que as vossas propostas já não resolvem, só agravam os problemas. Que tal darem lugar aos mais novos?” (Gomes Ferreira).
4) o registo do “estão aqui, estão a levar”: “(há o risco de) uma degradação da perceção dos investidores, pela qual vos devemos responsabilizar desde já. Se isso acontecer, digo-vos que como cidadão contribuinte vou exigir publicamente que reparem o dano causado ao Estado” (Gomes Ferreira).
5) O registo do “isso não se faz, mas é o que felizmente o governo está a fazer”: “Aliás, vocês não sabem que Portugal já fez e continua a fazer uma reestruturação discreta da nossa dívida pública? Vítor Gaspar como ministro das Finanças e Maria Luís Albuquerque como Secretária de Estado do Tesouro negociaram com o BCE e a Comissão Europeia uma baixa das taxas de juro do dinheiro da assistência, de cerca de 5 por cento para 3,5 por cento. Negociaram a redistribuição das maturidades de 52 mil milhões de euros dos respetivos créditos para o período entre 2022 e 2035, quando os pagamentos estavam previstos para os anos entre 2015 e 2022, esse sim um calendário que era insustentável. (...) A isto chama-se um “light restructuring”, uma reestruturação suave e discreta da nossa dívida, que continua a ser feita mas nunca pode ser anunciada ao mundo” (Gomes Ferreira).
6) O registo do “agora que isto estava a correr tão bem”: “Sabem que em consequência destas iniciativas, e sobretudo da correção dos défices do Estado, dos cortes de despesa pública, da correção das contas externas do país que já vai em quase 3 por cento do PIB, quase cinco mil milhões de euros de saldo positivo, os credores internacionais voltaram a acreditar em nós?” (Gomes Ferreira); “Temos hoje das taxas de juro mais baixas da nossa história recente. Em 2000 a taxa de juro implícita da nossa divida era de 5,6%. Hoje é de 3,9%. O problema é o stock de dívida não a taxa” (Vieira Pereira).
7) O registo do “eu tenho-vos debaixo de olho”: “Ou será que alguns de vós beneficiam direta ou indiretamente com a velha maneira de fazer negócios em Portugal e não querem mudar de atitude?”; ou “Com o vosso manifesto, o que pretendem? Voltar a fazer negócios de Estado como até aqui?” (Gomes Ferreira).
8) O registo do “ai que eles dão cabo de nós": “se os investidores internacionais levarem mesmo a sério a vossa proposta, poderão começar a duvidar da capacidade e da vontade de Portugal em honrar os seus compromissos e poderão voltar a exigir já nos próximos dias um prémio de risco muito mais elevado pela compra de nova dívida e pela posse das obrigações que já detêm?” (Gomes Ferreira).
Em quarto lugar, e é o que me interessa, vieram os argumentos substanciais. Todos esses argumentos – o tempo do manifesto, a eficácia das propostas do manifesto, os riscos da reestruturação proposta pelo manifesto –, todos, sem excepção, vencem ou perdem consoante aceitemos ou recusemos que vamos no bom caminho. Se vamos bem, então o manifesto perturba. Se vamos bem, então não devemos sequer pensar noutro caminho. Se vamos bem, então basta garantir que nunca se sai do trilho. Se vamos bem, a aliança melhor é a que garante fidelidade à estratégia actual e a aliança pior é a que leva a uma mudança.
Mas, se vamos bem, os homens (e as mulheres) do leme não parecem muito seguros. Cavaco Silva, no seu célebre prefácio do fim de semana passado, fez as suas contas e garante que, se houver um permanente superavite primário de 3% e crescimento nominal de 4%, só em 2035 se atingirão os 60% de dívida. Teodora Cardoso, do Conselho das Finanças Públicas, é muito mais pessimista: com um excedente orçamental maior (3,5%) e com um crescimento anual de 3,5%, em 2037 ainda andaremos pelos 84,7% de dívida. Ora, o Tratado Orçamental exige muito mais e muito mais depressa. E nenhum destes comandantes do leme tem a menor confiança no prognóstico de um crescimento alucinante durante vinte anos. Por outras palavras, os que nos dizem que estamos bem, que vamos bem e que é preciso continuar, no momento em que fazem as suas contas concluem que não é possível, como assinala Nicolau Santos.
Não há jackpot. Não resulta. A política actual não atinge os seus objectivos. E usa métodos desonrosos: cortar aos credores que são os pensionistas para favorecer os credores que são os fundos financeiros, cortar nos salários e promover o despedimento ou a emigração e ao mesmo tempo degradar a democracia com aumentos de impostos sem contrapartida de melhores serviços públicos, que são sucateados. A irresponsabilidade campeia nos programas que nos oferecem para os próximos vinte anos.
A constatação e a razão do Manifesto 70 é essa: mesmo pagando o equivalente a um serviço nacional de saúde por ano não se chega ao objectivo da dívida. Quase metade do aumento da dívida nos últimos anos deve-se ao efeito dos juros. É precisa uma viragem profunda. Essa viragem é a reestruturação da dívida, que tenha como objectivo reduzir drasticamente a perda económica, abatendo o desperdício da austeridade, para poder em contrapartida libertar recursos para os utilizar em criação de emprego e investimento.
Reorganizar o sistema de crédito ou proteger o sistema de segurança social, ambos credores do Estado, é naturalmente elementar. Renegociar com os outros credores internacionais é mais difícil. Exige conflitos e mediações. Exige sensatez e propostas sustentáveis. Exige parceiros. Mas exige sobretudo não continuar a perder tempo. E, se perdermos tempo, já só restarão soluções muito mais drásticas.
Os que estamos deste lado sabíamos da tempestade. Não há nada que não tivéssemos antecipado: nem a violência do governo, nem o situacionismo dos seus apoiantes, nem a retaliação sobre os signatários, nem o apelo ao silêncio, nem a desvalorização da democracia e do debate sobre as soluções. E continuo convencido, com pessoas de opiniões tão diferentes e de soluções tão diferentes para a nossa sociedade, de que há uma condição mínima, elementar, primeira: a reestruturação da dívida.
Ilustração: Google Imagens.
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