Já tenho dificuldade em ouvir o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. O mesmo me acontece com um tal Montenegro e outros porta-vozes do CDS. A população que precisa de confiança acaba por se confrontar com declarações diárias que tentam, desonestamente, gerar a confusão. Obviamente que o contraditório político é importantíssimo. Não é isso que está em causa, pois têm o dever democrático de exercer o direito de opinião e de serem fiscalizadores da acção política do governo. O que está em causa é a lengalenga, a dramatização e o medo que tentam instalar. São os megafones, em altos decibéis, repetindo até à exaustão, por outras palavras, aquilo que não perdoam: o facto de terem saído da governação. Vem aí o fim a desgraça, o PREC (Processo de Radicalização em Curso) dos anos que estamos a viver, como se não fosse tão legítima uma maioria de direita (PSD/CDS) como a existência, também parlamentar, de uma maioria de esquerda (PS/BE/PCP). Com toda a facilidade e desfaçatez esquecem-se dos anos que governaram a "roubar" literalmente o povo e que, no final, no saldo das contas, o défice tivesse ficado agravado. Corrói-lhes o facto de ter havido uma devolução do que foi subtraído à luz da austeridade e que, apesar de todos os constrangimentos, o défice, em 2016, ficará abaixo dos 3%. Ao contrário de se baterem contra uma Europa cega e em sistemática pressão, ora avisando, ora sugerindo medidas de austeridade, a direita, claramente contra o povo, aposta tudo na desestabilização, colocando-se ao lado de quem nos agride. Façam oposição digna, fiscalizem, mas defendam-nos das garras de uma Europa que ainda não se deu conta que perdeu a dimensão da solidariedade e da fraternidade. O texto que aqui deixo é do Jornalista Pedro Santos Guerreiro que nos ajuda a perceber o que foi a austeridade e a quem a mesma serviu.
"Portugal 2009/2014. Portugal antes e depois do pico da austeridade. Portugal com mais desigualdade e mais pobreza. Tinha de ser, foi a crise? Não: as políticas adotadas não atenuaram, antes agravaram, quer a pobreza, quer a desigualdade. A austeridade silenciosa sobre os pobres arrombou mais do que a que foi gritada pela classe média e pelos mais ricos. É um facto.
Os resultados estão no estudo “Desigualdade do Rendimento e Pobreza em Portugal”, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, com o apoio do Expresso e da SIC, que será debatido em conferência na próxima sexta e foi antecipado em primeira mão no semanário de sábado. É o primeiro estudo completo, e complexo, sobre o impacto social das políticas de austeridade da era troika. Os resultados são surpreendentes porque destroem a perceção generalizada de que foi a classe média a que mais alombou. E derrubam o discurso político sucessivamente apresentado de que os mais carenciados estavam a ser poupados. Porque, assim se dizia, apenas se cortavam salários e pensões acima de determinados valores; porque os aumentos de impostos incidiam sobre rendimentos maiores. A perceção era, nessa altura, de que a austeridade era progressiva. Pagariam mais os mais ricos. Pois era. Mas não foi. Foi regressiva.
A curva de pobreza inverteu e voltou a subir. Mas, mais do que isso, os cortes de rendimento que abrangeram todas as classes foram eles próprios desiguais. Tiveram maior peso entre os que tinham menores rendimentos. De 2009 para 2014, os 10% mais ricos tiveram uma redução de rendimento de 13%, os 10% mais pobres sofreram uma diminuição de 25%.
A explicação não está nos cortes de salários da função pública nem de pensões, nem sequer nos aumentos de IRS. Está nos cortes de apoios sociais, como o rendimentos social de inserção e o complemento solidário para idosos. E está no desemprego. Segundo o estudo, conduzido por Carlos Farinha Rodrigues, um em cada três portugueses passou pela pobreza durante pelo menos um dos anos entre 2009 e 2012. Ou seja, tiveram um rendimento mensal inferior à linha de pobreza, que em 2014 seria de 422 euros. O número de famílias sem ninguém empregado aumentou; as famílias mais alargadas e com mais crianças foram mais prejudicadas; os mais jovens foram mais afetados que os mais velhos; o número de crianças na pobreza aumentou.
Salvar as finanças de um país não pode ser um salve-se quem puder. Mas foi.
Isto revela a cegueira social da política da troika, que teve consequências ao contrário dos efeitos anunciados. E revela uma posição ideológica falhada (ou, hipótese pior, que teve sucesso). Porque, naquela altura, o discurso político do PSD afirmava ou supunha que os apoios sociais eram em si mesmos negativos porque subsidiavam quem preferia não trabalhar, tornando-se um fardo social financiado pelos impostos dos que trabalhavam. Reduzir os apoios sociais não resultou apenas da menor disponibilidade orçamental, mas também do que os economistas chamam de estímulos e do que nos cafés se chama “vai mas é trabalhar”.
Mas como ir trabalhar se trabalho não havia? Mais do que o aumento de desemprego, a diminuição do emprego tornou-se então uma das estatísticas mais brutais da economia.
O custo foi a seletividade social, entre os que pagaram muito mais impostos mas se mantiveram com patamares de rendimento acima da pobreza e dos que os dela desceram. Toda a gente sofreu. Quem sofre mais foram os mais frágeis. A austeridade não foi só bruta, foi à bruta. E os mais pobres, que não têm sindicato nem a mesma voz na comunicação social, ficaram mais pobres.
O discurso de que não havia alternativa e de que a intervenção da troika, abraçada pelo governo de Passos e Portas, foi a economicamente necessária e socialmente inevitável está errado. E dizê-lo já não é uma questão de opinião, mas de factos.
Os pressupostos do estudo podem ser debatidos. Esperemos todos que o sejam. Porque isso será uma forma de debater o que interessa: os efeitos sociais das políticas económicas num país desigual que parece não se importar assim tanto em sê-lo. Desde que a voz desse país não seja a dos excluídos, o som que se ouve é suportável.
Salvar as finanças de um país não pode ser um salve-se quem puder. Mas foi."
(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso Diário, 19/09/2016)
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