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sábado, 14 de novembro de 2020

Injectar lixívia em política


Por estatuadesal
Pacheco Pereira, 
in Público, 
14/11/2020

Um dos principais argumentos dos defensores do acordo com o Chega é a similitude entre a unidade da direita sob a direcção do PSD e os vários acordos do PS com o BE e o PCP. Se “eles” o podem fazer, por que é que “nós” não podemos? Sim, admitem, o Chega é pestífero, mas não o é mais o PCP ou o BE, com quem o PS se aliou para governar? O Chega é racista e xenófobo, e o PCP e o BE não são contra a Europa e a NATO, e amigos dos ditadores comunistas? Por aí adiante...



Esta comparação não tem qualquer fundamento nem factual, nem social nem histórico nem de ciência política, faz parte apenas de uma narrativa política autojustificatória para 2020. É o equivalente aos absurdos de Trump com a hidroxicloroquina ou o injectar lixívia nas veias para “limpar” o corpo do coronavírus.

Para nos colocarmos em 2020 e não em 1917, ou em 1933, ou em 1975, façamos uma distinção entre a tradição e o programa genético dos partidos e aquilo que é hoje o seu “programa activo”. O “programa activo” é o que um partido faz de facto, como actua, como recruta, como cresce ou diminui, o que é que o torna um sucesso ou um falhanço, que imagem tem na sociedade e junto dos seus militantes, “o que é que o faz/os faz mexer”, ou seja, a identidade prática do partido. A tradição, a história, o conteúdo programático original são muito relevantes e estão sempre presentes, mas, para analisar o que é a actuação, o carácter, a “natureza” de um partido, sem ser de forma a-histórica, ou seja, no presente, o “programa activo” é mais relevante porque toma em linha de conta a factualidade da sua actuação. Esta diferenciação não é nova e já foi usada para a história do PSD, distinguindo entre o conteúdo programático e a “história não-escrita”, ou seja, a história do partido como fonte de identidade.

Voltemos à equivalência Chega/BE ou PCP. São o BE e o PCP partidos “revolucionários” cujo objectivo é derrubar a democracia, substituindo-a por uma ditadura do proletariado ou um eufemismo como a “democracia avançada”? Se tivermos em conta a tradição dos vários grupos esquerdistas que formaram o BE e a génese e a história do PCP, a resposta é sim. Ambos têm origem na tradição comunista de raiz marxista-leninista. Mas de há muito que quer um, quer outro têm “programas activos” bem longe dessa tradição. Não vemos nem o PCP nem o BE preparar-se para a revolução, inevitavelmente armada e violenta, nem a organizar um sector militar clandestino nem a cumprir nenhuma das explícitas obrigações de um partido comunista traduzidas nas célebres 21 condições da Internacional Comunista. E sempre foi claro desde Lenine que estas condições são para cumprir, sob pena de estarmos a falar de partidos que se “social-democratizaram” ou se “aburguesaram”.


Nem o PCP nem o BE, cuja composição agrupa várias tradições esquerdistas, do maoísmo ao trotskismo, e que têm génese no leninismo organizacional, o fazem. E toda a panóplia de elementos complementares, seja a abolição da propriedade, a luta de classes, o anticapitalismo, é isso mesmo, de elementos complementares, que não são exclusivos do comunismo, mas partilhados pelo anarquismo, pelo fascismo, pelo nacional-socialismo, pelo socialismo radical. E só a deslocação excessiva das classificações políticas para a direita considera que sindicatos, greves, manifestações, combate aos despedimentos ou mesmo propostas anticapitalistas (que o PAN e a Iniciativa Liberal também fazem) são “revolucionárias”.

No caso do Chega, a solução para o problema é simples: “pedófilos castrados já”, o que podemos traduzir sem perda de sentido, acabe-se, castre-se o “sistema político”, ou seja, a democracia que produz pedófilos e criminosos.

Pode-se perguntar se isto acontece por oportunismo, para disfarçar a sua natureza aceitando as regras democráticas... Se é assim, já dura há muito tempo para que seja um disfarce. O tempo conta para o “programa activo” porque ele condiciona hábitos, práticas organizacionais, recrutamentos, processos, culturas. E isso muda quase tudo.

Vamos ao Chega. Como é um partido novo, o programa e as propostas estão ainda próximas do “programa activo”, mas existe uma diferença de conveniência entre o discurso oficial e o discurso real, aquele que recruta, move os militantes, dá identidade ao partido. E esse é claramente racista, xenófobo, violador dos direitos humanos e antidemocrático. Podem-se apontar muitos exemplos, mas, por economia de espaço, fico-me pela pedofilia, uma das bandeiras do Chega, que levou mesmo a manifestações de rua.

Corrupção e pedofilia são um par no discurso do Chega, mas as faces que são apresentadas nos cartazes são apenas de políticos, excluindo qualquer referência, quer a empresários ou a banqueiros, no caso da corrupção (“Portugal é um mar de corrupção: Duarte Lima, Vara e Sócrates”, diz um cartaz), quer a padres, no caso da pedofilia. O Chega entende que há uma ligação entre pedofilia e corrupção e essa ligação é o “sistema político”: “Pedofilia é igual a podridão do sistema político”, diz um cartaz.

Esta obsessão com a pedofilia e com a castração é reveladora, porque no discurso do crime e da ordem, que é vital no Chega, não são todos os crimes que contam. Por exemplo, a violência doméstica, que mata muitas mulheres por ano, não é crime para o Chega. Na verdade, nem é o crime nem a injustiça nem a pedofilia nem a corrupção que contam, mas a sua correlação com a política democrática. A solução para o problema é simples: “Pedófilos, castrados já”, o que podemos traduzir, sem perda de sentido, por acabe-se, castre-se o “sistema político”, ou seja, a democracia, que produz pedófilos e criminosos.

Nos seus “programas activos”, o BE e o PCP caminharam para a democracia, o Chega caminha para fora dela e a força da sua inegável vitalidade vem daí. Os eleitores do Chega não são inocentes, sabem muito bem em que votam e o que votam.

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