Adsense

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Graves entorses à democracia

 

Por
09 Novembro 2020 

No Reino Unido, o “instituto da adopção” tornou-se um grande negócio de influência e corrupção, onde vale tudo, e que toca todos os níveis e áreas da Segurança Social. Uma co-produção luso-britânica põe isso a nu. Fui ver “Listen” – Oiça, em tradução portuguesa – a primeira longa metragem de Ana Rocha de Sousa. Uma dura narrativa dramática, inspirada em factos reais da vida de uma família portuguesa emigrada em Londres. 



O filme, uma co-produção luso-britânica, tem como tema de fundo o problema da adopção forçada de crianças e jovens no Reino Unido (RU). E digo forçada porque, na realidade, a adopção de filhos de emigrantes decorre quase sempre contra a vontade dos pais, e como o filme mostra na condução do processo de adopção pelas autoridades britânicas tudo é consentido, onde nem falta a violência física e da pesada, sem falar já nos interrogatórios aos pais, de tipo fraudulento. 

Estamos perante um “instituto de adopção britânico” cego, surdo, tortuoso, fraudulento, burocratizado e quase sempre injusto, pelo menos quanto à emigração diz respeito e face a uma situação, como veremos, em que a decisão jurídica em relação aos pais biológicos é irreversível. 

O Parlamento Europeu, num relatório resposta a denúncias de adopções forçadas no RU, afirma que todos os países “têm algum mecanismo legal que permite avançar para adopções” sem o acordo dos pais. Contudo, “nenhum Estado exerce esse poder da forma como os tribunais britânicos o fazem”. 

Por outro lado, o Comité de Petições do Parlamento Europeu que apurou os dados das adopções nos anos de 2015/2016 informa que, neste período, o número de adopções foi de 4.690 e apenas 40 tiveram autorização dos pais. 

Estamos perante uma máquina bem montada para acompanhar a criança para à “mínima suspeita” retirar a criança aos pais e pô-la sob a alçada do Estado. 

Um erro de fundo de formatação em termos de princípios e funcionamento da Segurança Social do Reino Unido que corresponde a uma grave entorse à democracia parlamentar mais antiga do mundo. 

Vale a pena ver o filme pela denúncia de comportamento tão bárbaro. A narrativa acompanha os esforços (impossíveis) em provar que as suspeitas lançadas não têm razão de ser. O sistema está montado para contrariar todas as provas da família, inventando factos, como nódoas negras nos corpos da criança “por acção” dos pais, agressões corporais às crianças, acabando o tribunal por decretar a tutela forçada do Estado na base de que os filhos estão em risco de sofrer danos emocionais. 

No caso de “Listen” trata-se de uma família portuguesa a quem foram retirados os três filhos, um dos quais mudo. O filme realça a ligação fraterna visível existente sobretudo entre os dois irmãos mais velhos. 

Vê-se que todo o acompanhamento da Segurança Social inglesa foi predeterminado e orientado para atingir os objectivos – retirar os filhos àqueles pais que os tratavam com carinho e se esforçavam, embora com dificuldades, por dar-lhes condições mínimas de vida – para entregá-los a alguém (inglês), sem exigências provadas de que reunia condições para o acolhimento. 

E porquê tanto abastardamento? 

Essa, a grande questão. Os adoptantes recebem do Estado inglês uma grossa maquia e como podem adoptar até quatro crianças, o rendimento que conseguem auferir é bem suficiente para uma vida folgada, muito acima da média salarial do Reino Unido. 

Os incentivos financeiros foram aumentados no tempo de Blair. São estes incentivos apontados como um dos factores do aumento dos casos de adopção nos últimos anos. 

E a quanto montam os incentivos? 

Por cada criança acolhida, a família que acolhe recebe 700 libras por semana, ou seja, cerca de 3.100 euros/mês. Compare-se o salário mínimo do RU: 1.600 euros em Janeiro de 2020. Se uma família inglesa conseguir o acolhimento máximo (4) de crianças permitido recolhe a “boa” maquia de cerca de 12.400 euros. Uma verba choruda pouco acessível a muita gente da classe média alta. 

Daí criar-se em torno do “instituto da adopção” um grande negócio de influência e corrupção (onde vale tudo). Esta corrupção é desencadeada a todos os níveis e áreas da Segurança Social, dos quadros mais altos aos mais baixos, assistentes sociais, médicos e dirigentes, passando pelas escolas que as crianças frequentam e pelos tribunais onde é validada a adopção, com a aparência da máxima legalidade e de grande protecção da criança. 

Aliás, como denuncia o filme, é muito difícil haver casos de reversão da criança que entre num processo, por melhor que seja a argumentação do contraditório. E o número elevado de adopções forçadas assim o prova. 

Inclusive “fabricam-se” organizações paralelas, tipo agências privadas de adopção que lideram um negócio que gera anualmente milhões de libras. Como o filme mostra, este tipo de agência aparece de forma ardilosa junto dos familiares, aparentemente com o objectivo de “apoiar” as famílias que caem na ratoeira, mas cujo objectivo é, pelo contrário, ajudar a consolidar o acto final – retirar a criança da alçada dos pais. 

Não domino a situação na sua profundidade e, sobretudo, as intrincadas leis inglesas e as margens de fuga que permitem. Mas pelo que tenho lido era uma das situações muito incómodas neste domínio ao nível da União Europeia. Muitos Estados-membros avançaram com queixas sobre casos que se passaram no Reino Unido com os seus emigrantes, entre eles Portugal e Dinamarca. Alguns chegaram a ser dirimidos nos tribunais. Mas o que se conclui é que os meandros da justiça britânica são demasiado perversos e as teias de negócios obscuras e bem consolidadas. 

Com o Brexit este problema salta da esfera europeia passando para o nível bilateral. Mais complexo se torna. Não estou a ver que as condições melhorem pois, para além do negócio envolvente dos grandes interesses em jogo, há ainda um problema de demografia que muito interessa ao Reino Unido, no sentido de “refrescar” a sua estrutura populacional. 

E resta-nos questionar. Será que, na Europa, o Reino Unido é uma excepção ou outras excepções, embora de grau diferente, proliferam no interior da democracia dos vários países?! 

Em todos os países, a problemática dos menores é muito delicada e complexa, com vários tentáculos que não se limitam apenas ao domínio da adopção, mas chegam a outras áreas como a defesa do “património” do menor, a tutoria do menor sobretudo, na situação de mortis causa de um dos progenitores, situação bem mais agravada se o sobrevivente for a mãe. 

Estamos a entrar, ou melhor, já estamos na terceira década do século XXI com uma legislação que ainda cheira a Idade Média de tão retrógrada que é. Porque se arrastam estas situações, transversais a todos os países, numa Europa que se diz avançada e moderna? 

No tocante à adopção, estes problemas afectam sobretudo os imigrantes pelo que a sua secundarização é uma realidade. Nos restantes domínios, como o dos bens patrimoniais ou da tutoria do menor, a resposta é bem menos clara. Estamos cientes do pouco que se tem avançado, do predomínio de ideias antiquadas, da desconfiança reinante em relação à mulher, ideias decorrentes de um passado vincadamente conservador que urge debater e encontrar as formas de o superar. Um grande problema para a União Europeia e em especial para o Parlamento Europeu. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

Sem comentários: