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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O injector castigado

 

José Gameiro, 
in Expresso, 
27/11/2020



Resposta do diretor de Minas.“Por se recusar a trabalhar mais de cinco dias e causar uma quebra da produção do sector, o prisioneiro Injetor deve ser detido durante 72 horas e não deve ser autorizado a ir trabalhar. Será colocado num pelotão com tarefas, em condições intensivas. O caso deve ser investigado. Irei notificar o engenheiro chefe de que há uma ausência de disciplina na produção. Recomendo a substituição do prisioneiro Injetor, por outro trabalhador.”Cito uma mensagem do diretor do Sector Golden Sping, Campo de Kudinov, para o diretor-geral das Minas.“De acordo com o seu pedido de explicações para a paragem de seis horas da quarta brigada de prisioneiros, no sector das minas de ouro, passo a reportar. A temperatura do ar, de manhã, era de 60° negativos. O nosso termómetro foi quebrado pelo supervisor, no entanto, foi possível medir a temperatura, porque uma cuspidela gela, antes de cair no chão. A brigada chegou a horas ao trabalho, mas não conseguiu trabalhar, porque o injetor de água quente, que aquece o solo, recusou-se a funcionar. Avisei diversas vezes o engenheiro da manutenção que o injetor já estava a operar mal, mas não foram tomadas medidas. O engenheiro recusa substituí-lo por um novo. Os trabalhadores ficaram parados muitas horas, sempre ao frio, porque não foram autorizados a fazer fogo de chão, nem a regressar às barracas. Escrevi a todas as autoridades, desde há cinco anos, esclarecendo que não podia continuar a trabalhar com um injetor destes. O engenheiro chefe não liga nenhuma e exige que a produção se mantenha.”

Estas mensagens são da obra “Contos de Kolimá”. O autor foi o escritor russo Varlám Chalámov, que cumpriu pena, por duas vezes, no total de 20 anos, a trabalhar 16 horas por dia, em minas de carvão e de ouro. Foi detido uma primeira vez por imprimir panfletos contra Estaline e uma segunda, mais longa, por atividades trotskistas, contrarrevolucionárias, sendo então enviado para a região de Kolimá, na Sibéria. Quando regressou a Moscovo começou a escrever os “Contos”, num total de duas mil páginas, publicados em seis volumes.

O absurdo do injetor que é detido não é, obviamente, suficiente para mostrar a violência da vida no Gulag. Muito menos para revelar a violência institucional que a raça humana, quando tem poder discricionário, é capaz de exercer sobre os seus. Mas serve para exibir a subserviência e a cobardia de quem, provavelmente, para salvar a pele e ter algumas benesses, é capaz de mandar prender uma peça mecânica, tão habituado a deter tudo e todos.

Muito se investigou sobre os limites de um grupo de pessoas, dirigentes e não dirigentes, nas suas capacidades de prender, torturar, matar e mandar matar. A Alemanha nazi, a União Soviética e os Balcãs, mais recentemente, foram os “laboratórios”, onde se tentou compreender até onde, em determinados contextos políticos, a raça humana é capaz de ir, na sua agressividade. Quando se pretendem justificar os Gulags, com as melhorias do nível de vida de um povo, usando a velha frase ‘os fins justificam os meios’, estão a tentar branquear-se os assassínios em massa, em zonas de oposição ao regime, assim como as execuções seletivas de possíveis concorrentes de Estaline.

Com o declínio da importância das humanidades e a instauração do capitalismo desregulado, iniciado por Reagan e Thatcher, o fosso entre ricos e pobres aumentou. E também se cometeram muitas atrocidades, em nome da democracia. Mas apesar desta evolução, nunca, nos países ocidentais, o essencial dos direitos fundamentais foi posto em causa. Não matamos e não prendemos injetores... De vez em quando, convém relembrar.

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