Andam por aí, ululando pela noite densa, bandos de bruxas, sacolas vesperais de “Pão-por-Deus” e ainda os plangentes requiem’s nas saudades sepulcrais que se aproximam. Todavia, o pior de todos os ‘halloween’s’ é esse agoiro sem máscara que, nem passado um ano, faz segunda visita indesejável às nossas portas. É, por isso, um tempo de heróis aquele que nos coube viver. Em vários registos e múltiplas direcções caminham eles, muitas vezes anónimos, mas em todas as circunstâncias, corajosos, persistentes e, quase sempre, incompreendidos.
Em fim-de-semana, volto ao meu recanto pré-definido, para visualizar essoutro herói, tão imponente quanto ignoto, protótipo de tudo quanto de coerente e consequente o mundo produziu. Procuro-o, atravessando a alameda de tantos heróis, sempre verdes e robustos como os seculares embondeiros das florestas inexploradas. Entre eles, António Vieira, supremo de verbo e inquebrável de acção. Luther King e Mandela. Mais perto de nós, Hélder Câmara e António Ferreira Gomes, o do Porto, que afrontaram os ditadores, o primeiro no Brasil, o segundo em Portugal. E, para honra nossa e privilégio do planeta, o “Homem que veio do fim do mundo”, cuja palavra e exemplo têm abalado as estruturas viciadas de um mundo mergulhado na corrupção, na hipocrisia e na “economia que mata”.
No reino das sombras, senão mesmo nas novas catacumbas das velhas trevas do Vaticano, lá está o Homem, o Herói sem medo, com a sua voz frágil espadanando os mitos e os tronos, as aras e os baldaquinos onde nos querem fazer crer que está Deus, quando afinal não passam de bruxos e cadafalsos, ‘nomes com que o povo néscio se engana’. Grande Papa Francisco, Admirável, ‘Superstar’ de um mundo disperso na noite!
Mas, interrogo-me, por que peregrina razão se espanta a nossa civilização com a palavra do argentino Bergoglio?... Que há de novo nos seus rasgos de veemente interpelação ao mundo, aos poderosos, aos políticos e, sobretudo, aos cardeais da corte vaticana, à Igreja total?... Não vejo outra resposta senão a da inércia, da ignorância, melhor dito, do absoluto desconhecimento, por acção e omissão. Ao longo dos séculos, a inércia dos homens e o ardil dos manipuladores encarregaram-se de esconder aos olhos do povo a página que é publicamente exposta neste fim-de-semana diante de quem queira ler com olhos de ver. É do capítulo 23 de Mateus Evangelista.
Foi duro, corrosivo e sem tréguas o conflito sócio-religioso de Jesus de Nazaré com as hierarquias sacro-políticas reinantes, mais acérrimo, porém, com os titulares do Templo de Jerusalém. Não há equivalência possível entre essa época e a actual. Compaginando os dados históricos, os corifeus dominadores da sociedade de então, alguns deles rivais entre si, uniram-se num único projecto comum: calar aquela voz, liquidar aquele ‘estorvo’ provocador da comunidade judaica. Era esse o desígnio ‘constitucional’ do monstro de duas cabeças: o poder político e o poder religioso.
Contra os Golias de ferro-e-fogo, o Nazareno não perdeu tempo em diplomacias, maciezas, poematos, complacências prudentes, nem com pílulas assintomáticas. Com o mesmo vigor com que zuniu os azorragues de corda dobrada contra os vendilhões do Templo, brandia a palavra como uma espada de muitos gumes. Sem comentar, para não tirar-lhe a veemência, ei-la em discurso directo:
«Na cadeira de Moisés sentaram-se os escribas e os fariseus.
Fazei e observai tudo quanto vos disserem,
mas não imiteis as suas obras,
porque eles dizem e não fazem.
Atam fardos pesados e põem-nos aos ombros dos homens,
mas eles nem com o dedo os querem mover.
Tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens:
alargam as filactérias e ampliam as borlas;
gostam do primeiro lugar nos banquetes
e dos primeiros assentos nas sinagogas,
das saudações nas praças públicas
e que os tratem por ‘Mestres’.
Vós, porém, não vos deixeis tratar por ‘Mestres’,
porque um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos.
Aquele que for o maior entre vós será o vosso servo”.
Traduzamos estas inultrapassáveis imprecações para os tempos e as estruturas actuais. Quem seria capaz de as proferir?... Quem ousaria afrontar com tanta transparência e intrepidez os magnatas das finanças, das políticas e das religiões?...
Jesus de Nazaré, o Maior!
31.Out.20
Martins Júnior
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