Por estatuadesal
Francisco Louçã,
in Expresso Diário,
03/11/2020
Será pela madrugada dentro que saberemos quem será o novo Presidente dos Estados Unidos. Com as particularidades do sistema eleitoral norte-americano, Biden poderia ganhar por mais de dez milhões de votos e ainda assim ser Trump a tomar posse; e o possível atraso na contagem dos votos postais agrava a incerteza, dado que esta só termina no dia 20 de novembro na Califórnia (mas não muda o resultado desse estado, aí Biden ganha com trinta pontos percentuais de vantagem), enquanto nos Estados oscilantes só se conclui no dia 9 no Iowa, 10 no Nevada e Minnesota, 12 na Carolina do Norte, 13 no Ohio. Se as diferenças no voto de urna forem marginais, é nessa contagem tardia que se decide o resultado.
Entretanto, pode ser que milícias bloqueiem pontes, como ontem aconteceu, ou que haja intimidação em mesas de voto (alguns tribunais discutiam se as armas levadas pelos votantes têm que ir escondidas). Pode ser que Trump se barrique na Casa Branca, e é mais do que provável que desencadeie uma saraivada de processos judiciais confiando num Supremo Tribunal alinhado partidariamente. Ou pode ser que os votos da Florida e do Arizona, dos primeiros a serem anunciados, antecipem o resultado final e dificultem uma contestação substancial. Mas se há uma certeza neste emaranhado, é que Trump resistirá a ferro e fogo.
Há uma interpretação para estas ameaças que sugere que é a montanha de dívidas que fala pelo presidente em risco. Será verdade. Mas há muito mais: as bravatas que crescem nesta longa terça-feira revelam somente que Trump não tem uma concepção democrática da política. Com ele, não se trata somente do estilo de rufia, o que se afirma é um projeto de ocupação do poder por uma extrema-direita que só pode fazer valer a sua força se amedrontar os adversários, se polarizar desesperadamente os seus apoiantes e se manobrar uma aliança que abranja os setores mais agressivos do capital, como são nos EUA os irmãos Koch, por exemplo.
Argumentei aqui que, como um bufão, Trump exibe como credencial a sua própria incapacidade ou até imaturidade para o cargo, que demonstrou exuberantemente pela forma como tratou a pandemia. No entanto, um sucesso desta forma de política não é inédito, os EUA tiveram Nixon que, mesmo sendo um operador das sombras mais dotado do que o atual presidente, arrastou o país e o partido republicano para uma viragem histórica (e acabou por perder).
A força de Trump, agora potenciada em escala superior pela diferença fundamental que é o controlo de redes sociais, enraiza-se na necropolítica, essa violência estrutural dos discursos, da cultura e da organização do ódio como linguagem do supremacismo branco, que tem antepassados na guerra civil, nas leis e na cultura discriminatória. Ora, há uma base de massas para a necropolítica, o suficiente para acreditar que pode submeter o país.
Por isso, ao contrário de vários comentadores, não creio que, no cenário de derrota de Trump, a força que ele representa venha a ser domesticada. O mundo mudou mesmo e o génio não volta a entrar na lâmpada. Sob uma face ou outra, o que se descobriu foi uma tecnologia destrutiva de grande potência. Será utilizada por qualquer outro candidato que mobilize os mesmo interesses sociais.
As “salas de guerra” que o Facebook anunciou que terá a funcionar hoje, para bloquear declarações antecipadas de vitória que não sejam confirmadas pela Reuters ou pela Associated Press, e a suspensão de anúncios políticos nos próximos dias, ou o anunciado controlo pelo Twitter da velocidade da retuitização de boatos, nada disso obstará à conclusão mais pesada destes últimos anos: na era da hipercomunicação, a racionalidade e a argumentação tendem a ser expulsas do discurso político. Entramos na era da selvajaria, o que é o mesmo que dizer da força bruta. Mesmo que perca, Trump deixa a sua marca e os seus herdeiros. E podemos ter a certeza de que esses nos vão atormentar pelos tempos fora.
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