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quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Republicanos: depois da cobardia, o vazio


Por estatuadesal
Daniel Oliveira,
in Expresso Diário, 
05/11/2020

Depois de Donald Trump ter posto em causa umas eleições presidenciais dos Estados Unidos, falando de fraude e de roubo sem qualquer indício para tal, discursou o seu vice-Presidente. Mike Pence não o secundou. Nem o afrontou. Limitou-se a pedir vigilância perante a contagem dos votos que o seu Presidente não quer contados e a mostrar-se otimista. Houve quem reparasse na diferença de estilo e o tenha elogiado. Em mim, teve o efeito oposto. Ele tem consciência do absurdo que estava a ser dito, da irresponsabilidade de partir um país a meio em torno da credibilidade do processo eleitoral e do perigo que aquele homem representa para a democracia norte-americana. Pior do que um fanático é o oportunista que o apoia.



Quando cheguei a Cleveland, em 2016, e comecei a conversar com delegados à convenção republicana, percebi que depois da sua nomeação Trump não iria encontrar qualquer resistência interna. Que aquelas duas máquinas de poder, democratas e republicanas, só não estão preparadas para alguém que ponha em causa o poder do dinheiro – e é por isso que Bernie Sanders nunca teve as abébias que foram dadas a Trump. Ouvi, na altura, de uma apoiante de Ted Cruz: “As pessoas precisam que lhes digam a verdade. Concordo com muito do que [Trump] defende, o problema é não bater certo com o que fez.” Ted Cruz e muitos do que ainda resistiam a baixar a cabeça perante o novo rei não eram mais moderados do que Trump. Seriam apenas mais polidos e coerentes. Mas não havia nenhum cisma programático no Partido Republicano. O problema para o establishment republicano não era o que Trump defendia, é ser ele a defendê-lo. Até ele passar a ser a cúpula do establishment republicano.

Mas nem a facilidade com que transformou aquela convenção num evento pessoal me chegou para perceber até onde podia ir a capitulação republicana. Tirando alguns corajosos resistentes, toda a estrutura republicana, de governadores a senadores, de congressistas ao vice-Presidente, se vergou aos caprichos deste homem. A coisa foi tão longe, o ultraje à tradição republicana foi de tal forma aviltante, que não sei o que sobrará depois disto. Quando um Presidente do seu campo político põe em causa a legitimidade do processo eleitoral, que ligação sobra entre os republicanos de hoje e a sua história? Que raízes não foram arrancadas pela megalomania de um Presidente eleito mas com perfil de autocrata?

Claro que a radicalização que levou a Trump não começou agora. Começou com a candidatura de Barry Goldwater, que em 1964 iniciou a caminhada que levou a Reagan, quase vinte anos depois. Continuou com a chegada do inepto filho de Bush à Casa Branca. E iniciou a sua fase decadente quando o honrado McCain foi obrigado a aceitar a inenarrável Sarah Palin como sua vice, mostrando como os republicanos já eram reféns da sua própria derrota intelectual. Todos eles parecem normais quando olhamos para Trump. Mas nenhum conseguiu transformar, como Trump, o Partido Republicano numa alforreca.

Claro que os republicanos, movidos como os democratas pela luta pela sobrevivência, se irão adaptar ao pós-Trump, quando esse momento chegar. A dúvida é como o conseguirão fazer depois de um silêncio coletivo tão confrangedor, depois de tantos senadores e congressistas terem transigido em todos os valores democráticos. Quanto maior é a cedência na vitória maior será o vazio depois da derrota. A questão não é o que sobra da agenda política dos republicanos. É o que sobra da sua dignidade.

Quando vemos que entre as novas congressistas eleitas está uma adepta do QAnon, uma seita de lunáticos de extrema-direita que acredita que Donald Trump foi escolhido para combater uma organização secreta de pedófilos que reúne altos funcionários do Estado, estrelas de Hollywood, os Clinton, Obama e Soros, percebemos que o manicómio é o limite.

Saia Trump da Casa Branca em janeiro ou daqui a quatro anos, a cobardia dos seus cúmplices deixa um vazio moral, político e intelectual que será ocupado por malucos cada vez mais extremistas. Como Trump faz Bush parecer um estadista e Bush fez Reagan parecer um intelectual, o atual Presidente ainda nos parecerá normal. Até a direita norte-americana se autodestruir com a sua própria radicalização e loucura.

Tudo isto é extensível à direita europeia que se está a trumpizar e àquela que com ela se alia. Onde a direita moderada e democrática achou que venceria esta loucura integrando-a no sistema foi derrotada. Porque essa absorção só serviu para legitimar aos olhos de muitos o que deveria ser aberrante. Angela Merkel foi das poucas a perceber que esse não era o caminho e é das poucas que não está refém desta loucura. A noite eleitoral de terça-feira, o inédito ataque de Trump ao sistema democrático eleitoral do país e a cumplicidade de todo um partido mostram que a integração da extrema-direita no poder não matará este fenómeno. Apenas lhe dará força para ser cada vez mais arrojada. Matando por dentro os que aceitem ser seus hóspedes.

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