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domingo, 21 de março de 2021

O problema da Maçonaria na vida política democrática


Por estatuadesal
José Pacheco Pereira, 
in Público, 
20/03/2021


A discussão actual foi suscitada por uma proposta original do PAN e outra do PSD que, com diferentes graus de obrigatoriedade, implicam a revelação na vida política da qualidade de membro da Maçonaria. Ambas estão mal feitas, são atabalhoadas e, no caso do PSD, misturam, por uma obsessão salomónica que passa por isenção, o Opus Dei e a Maçonaria. Ambas as organizações podem gerar efeitos políticos semelhantes, no âmbito do clientelismo e do patrocinato, mas são diferentes na sua génese e no seu modus operandi e, acima de tudo, distinguem-se no modo como tratam o segredo, o aspecto mais relevante para a actual discussão. Acresce que a Maçonaria intervém essencialmente pelos seus membros, as suas afinidades e “irmandades”, sem comando colectivo, embora haja uma hierarquia de graus, e o Opus Dei tem hoje uma intervenção na vida pública que envolve o seu papel nas instituições financeiras e no mundo dos negócios, para além da presença, que não é única na Igreja, nas instituições de ensino.



É sobre a Maçonaria que me vou pronunciar, porque sou a favor da obrigatoriedade de declaração de pertença, para o registo de interesses, dos participantes na vida política, em particular em eleições e cargos electivos. Toda esta matéria está armadilhada, por conspirações, desconhecimentos vários, análises sem contexto histórico, quer do lado antimaçónico quer do dos defensores da Maçonaria. Esclareço desde já que nada me move nem contra a Maçonaria, nem a sua pertença, nem comparticipo das teorias sobre a sua relevância como “sombra” de tudo o que acontece, posições, aliás, alimentadas pelo segredo que a envolve. Penso, de resto, que a sua importância é habitualmente exagerada e que a sua influência na coisa pública é hoje muito menor do que a que existiu no passado, mesmo depois do 25 de Abril.

Acresce também que não há apenas uma Maçonaria, mas duas, e que são diferentes em muitos aspectos. A antiga Maçonaria, aquela a que praticamente toda a gente se refere, é o Grande Oriente Lusitano, o GOL. Mas na década de 80 começou a surgir uma cisão que deu origem à Grande Loja Legal de Portugal/Grande Loja Regular de Portugal, GLLP/GLRP, em 1991. A influência do GOL é predominante no PS, está também presente no PSD e no CDS, mas tem sido a GLLP/GLRP que explica que, na vida política, o único partido em que a influência maçónica cresce é o PSD.

Qual o problema que justifica a obrigatoriedade da declaração de pertença no registo de interesses, em nome da transparência? É muito simples e a confusão que é lançada todos os dias é igualmente suspeita e releva para a importância desse registo: a Maçonaria tem uma intervenção na vida pública que produz efeitos na política, seja pela “protecção” de carreiras, seja pelas escolhas para certas áreas da política democrática de grande sensibilidade, como seja, por exemplo, os serviços de informação e segurança, em que a presença de maçons é relevante. Pode-se e deve-se perguntar porquê. A resposta envolve a horizontalidade da organização, que percorre diversos partidos e facilita os contactos não escrutináveis entre políticos e negócios, mútuas informações e mútuas protecções. E, depois, o oculto do segredo e as relações de confiança entre “irmãos” que tem papel nas escolhas e nas carreiras. Não precisa de estar decidido em reuniões ou em instruções, faz-se naturalmente pelos rituais de pertença, reconhecimento e “irmandade”.

O exemplo que é mais conhecido é o da Loja Mozart, do GLLP/GLRP. Na lista dos seus “irmãos” encontram-se vários membros do PSD e da JSD, alguns que foram membros do governo, um líder parlamentar, deputados, o presidente da Ongoing, um grupo de gente do PSD envolvida no processo da Ongoing, chefes de gabinete, chefes militares, membros da chefia dos serviços de informação. Quando rebentou o escândalo envolvendo o SIED e a Ongoing e começou a haver escrutínio da comunicação social, houve uma debandada da Loja para outras da mesma obediência maçónica, e explicações esfarrapadas de que só lá tinham ido por curiosidade, como se à Maçonaria se fosse por curiosidade. Teve esta Loja e a sua pertença algum papel na vida política? Basta ver a lista de “irmãos” que é conhecida, e que não é total, para ver como nalguns cargos na Ongoing, no grupo parlamentar do PSD e nos serviços de informação estão lá o número um e o número dois, o patrão e o empregado. Para além do mais, é difícil ver na pertença à Loja qualquer especial dedicação ao Supremo Arquitecto, mas sim preocupações de carreira, dinheiro e influência.

A este exemplo podem acrescentar-se outros do PS, em que a presença da Maçonaria é historicamente relevante e mais antiga. A crescente influência no PSD é que é nova, até porque, por razões históricas, se trata de um partido com uma forte génese antimaçónica e anticomunista. Pode-se dizer que o objectivo de Rio é mostrar essa influência no PSD, até porque um número significativo dos seus adversários internos é maçon.

Pode ser, mas também aqui é importante que se saiba, porque na vida política isto não é uma “questão de consciência”, nem matéria de privacidade, nem comparável à revelação da identidade religiosa ou de género. Pode a revelação da qualidade de pertença à Maçonaria ser um prejuízo pessoal, profissional e político? Pode, mas a qualidade de membro do PCP nuns meios ou do PSD noutros também é. E, no caso da Maçonaria, a manutenção do segredo aumenta a especulação que só é mitigada pela revelação da filiação.

A Maçonaria tem um sistema de valores que a colocam no plano cívico e político em sentido estrito e uma forma de organização que implica o segredo ou a “discrição” que é uma aberração em democracia. Se alguém quer ser da Maçonaria em segredo, muito bem, desde que não seja na vida política. Até porque são os mecanismos de segredo que mais têm permitido os abusos de patrocinato, tráfico de influências e corrupção.

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