Por estatuadesal
Francisco Louçã,
in Expresso,
30/03/2021
Houve um momento enternecedor quando, esta segunda-feira, alguns jornalistas perguntaram ao primeiro-ministro se iria desencadear uma crise política em resposta à promulgação pelo presidente das três leis sobre apoios sociais. Costa deu a resposta que se esperaria, depois da pergunta que era inevitável – naquele jogo toda a gente sabia o seu papel, tantas vezes foi o cântaro à fonte e ainda não é desta que lá deixa a sua asa.
De facto, não houve nenhuma ocasião relevante ao longo dos últimos anos em que o governo não mostrasse cogitar uma boa crise eleitoral: foi assim no último ano da geringonça, foi também o que o levou a exigir maioria absoluta nas eleições de 2019, foi assim mais uma vez nas vésperas deste último Orçamento, até pode ter acontecido noutros momentos. E se, de todas as vezes, a questão era absurda, neste momento seria grotesco criar essa tensão, como o primeiro-ministro bem sabe e, aliás, afirmou.
Para mais, todos os alvos estariam errados, provocar um confronto com o Presidente é impossível e menos ainda em nome de uma cruzada para recusar apoios sociais, depois de o governo ter dito que a sua única regra era “tudo o que for necessário”. Tanto a pergunta quanto a resposta de rotina sobre a crise política foram simplesmente uma cena de telenovela.
Apesar dessa fantasia, que só o governo tem alimentado, tem sido sempre em modo dramalhão que a ameaça do recurso ao Tribunal Constitucional tem sido esgrimida. No Orçamento Suplementar de 2020, o governo ameaçou recorrer ao Tribunal contra medidas que não estavam previstas na proposta de lei, com o argumento esdrúxulo de que o governo poder propor ao parlamento a correção do Orçamento, mas que este teria que o aprovar de cruz e não poderia decidir nenhuma outra medida. Houve carta lacrada e doutrina a rodos para este efeito. O governo acabou por recuar e deixou o Tribunal em paz, ao constatar que uma das medidas cuja legitimidade queria contestar tinha sido proposta pelo seu próprio partido. Primeiro ato.
Veio depois o Orçamento 2021, em que o parlamento aprovou que sem auditoria à conta não haveria pagamento ao Novo Banco. Novo dramalhão, foi anunciado com ar de enterro de Estado que tinha rebentado uma “bomba atómica”, que o governo iria defender a honra da República no Supremo Tribunal Administrativo ou no Tribunal Constitucional, ou nos dois à vez. O crime era de monta, o parlamento tinha aprovado o critério que o próprio primeiro-ministro tinha anunciado uns meses antes. O resultado foi que a querela não chegou nem ao Supremo Tribunal nem ao Tribunal Constitucional, foram ambos poupados a esta inutilidade. Segundo ato.
Agora, antecipando-se à decisão do Presidente no caso destes três decretos sobre apoios sociais a que o parlamento introduziu alterações, o governo cometeu a imprudência de veladamente ameaçar Belém, tendo ainda disparado nos últimos dias uma campanha mediática: na sexta-feira, dizia que custarão 38 milhões por mês (ontem já tinha subido para um total de 250 milhões) e que já se pagou um ror de dinheiro em felizes apoios sociais. Nada que resista a uma observação minuciosa: os apoios agora promulgados são razoáveis para não excluir alguns pais em apoio aos filhos (mas as aulas estão a recomeçar e portanto o custo será diminuto), para defender os profissionais de saúde, e ainda para aplicar como regra dos apoios a referência a 2019 e não a 2020, quando já não havia rendimentos. Tanto que é assim que o PS, com o seu voto no parlamento, veio reconhecer que pelo menos uma das medidas era imperativa. No fim das contas, a despesa talvez venha a ficar mais próxima do que o governo indica para um mês do que de qualquer efabulação orçamental que agora usa para impressionar a opinião pública. E, claro está, veio a ameaça de ir ao Tribunal Constitucional. Terceiro ato.
Pode ser que também desta vez, como das anteriores, o governo encontre uma justificação para não mandar as leis para o Tribunal. Se o fizesse, seria inútil, a decisão viria depois das vacinas e não é de crer que o ministério pense em mandar paisanos para recuperarem os curtos apoios sociais um ano depois de terem sido pagos, abanando um acórdão na cara dos cidadãos espantados para lhes confiscar as carteiras. E, no curto prazo, o seu prejuízo político é imenso, mostraria uma mesquinhez e um calculismo para reduzir apoios tão escassos a gente tão necessitada, que é tudo menos o que o governo quer que seja a sua imagem.
Há ainda a razão institucional, sabendo que o Presidente fechou a porta à contestação constitucional, ao afirmar, com razão, que não há nenhuma violação da lei-travão, dado que a despesa prevista não será esgotada – no final do exercício orçamental, como no ano passado, o governo vai festejar ter poupado na conta. Hoje mesmo, o governo veio confirmar indiretamente este argumento do Presidente, explicando que poderia pagar ao Novo Banco mais de 400 milhões, mesmo que não estejam previstos no Orçamento, dado que tem poder legal para deslocar verbas de uma rubrica para outra, desde que não ultrapasse o total previsto.
Não sei se o governo se atreve a um debate público em que num prato da balança está o ajustamento entre rubricas para pagar 400 milhões a um banco com práticas tão suspeitas e, no outro prato da balança, a sua recusa soberba em ajustar as rubricas para dar a mais de cem mil vítimas da crise um pouco mais do que os 219 euros que agora são a sua sobrevivência mensal.
Assim sendo, pode ser que a S.Bento só venha a interessar salvar a face e manter a pose de conflito com o parlamento, fingindo ignorar o presidente, mas evitando meter-se por caminhos de disputa legal que, se ganhasse, seria em tempo inútil, sendo mais provável que perca de qualquer modo.
Fica uma lição, a de que o governo reagirá a futuros problemas deste tipo recorrendo ao seu instinto, que é o dramalhão. Resta saber se, quando o fizer pela enésima vez, os jornalistas ainda se lembrarão de lhe perguntar se desta vez é que é.
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