Tem cerca de dez anos quando li e guardei um texto do falecido pedagogo Rubem Alves. Porque esta é uma época de exames, vasculhando textos, regressei à sua leitura. E depois de saboreá-lo, ficou-me o lamento, porquê, tantos anos passados, não aparecer um ministro, um secretário, um director ou seja lá quem for, que aprenda qualquer coisinha e tente, no mínimo, proceder a experiências piloto no sentido de uma escola onde, como salienta Rubem Alves, "(...) quem acumula muito saber só prova um ponto: que é um idiota de memória boa". Aqui fica, para reflexão, este texto escrito sob a forma de carta: "Caro professor".
"Compreendo a sua situação. Você foi contratado para ensinar uma disciplina e você ganha para isso. A escolha do programa não foi sua. Foi imposta. Veio de cima. Talvez você tenha ideias diferentes. Mas isso é irrelevante. Você tem de ensinar o que lhe foi ordenado. Pelos resultados do seu ensino você será julgado – e disso depende o seu emprego. A avaliação do seu trabalho se faz por meio da avaliação do desempenho dos seus alunos. Se os seus alunos não aprenderem, sistematicamente, é porque você não tem competência.
O processo de avaliação dos alunos é curioso. Imagine uma pessoa que conheça uma série de ferramentas, a forma como são feitas, a forma como funcionam – mas não saibam para que servem. Os saberes que se ensinam nas escolas são ferramentas. Frequentemente os alunos dominam abstractamente os saberes, sem entretanto saber a sua relação com a vida. Como aconteceu com aquela aeromoça a quem perguntei o nome de um rio perto de Londrina, no norte do Paraná. Ela me responde: “Acho que é o São Francisco”. Levei um susto. Pensei que tinha tomado o voo errado e estava chegando ao norte de Minas… Garanto que a moça, numa prova, responderia certo. Ela sabia onde o São Francisco se encontra, no mapa. Mas ela não aprendera a relação entre o símbolo e a realidade. É possível que os alunos acumulem montanhas de conhecimentos que os levarão a passar nos vestibulares, sem saber o seu uso. Como acontece com os “vasos comunicantes” que qualquer pedreiro sabe para que servem sem, entretanto, saber o nome. O pedreiro seria reprovado na avaliação escolar, mas construiria a casa no nível certo. Mas você não é culpado. Você é contratado para ensinar a disciplina.
Cada professor ensina uma disciplina diferente: física, química, matemática, geografia etc. Isso é parte da tendência que dominou o desenvolvimento da ciência: especialização, fragmentação. A ciência não conhece o todo, conhece as partes. Essa tendência teve consequências para a prática da medicina: o corpo como uma máquina formada por partes isoladas. Mas o corpo não é uma máquina formada por partes isoladas. (Kurt Goldstein escreveu um livro maravilhoso sobre o assunto, que deveria ser publicado em português: O corpo.) Às vezes as escolas me fazem lembrar o Vaticano. O Vaticano, 400 anos depois, penitenciou-se sobre Galileu e está a ponto de fazer as pazes com Darwin. Os currículos, só agora, muito depois da hora, estão começando a falar de “interdisciplinaridade”. “Interdisciplinaridade” é isto: uma maçã é, ao mesmo tempo, uma realidade matemática, física, química, biológica, alimentar, estética, cultural, mitológica, económica, geográfica, erótica… Mas o facto é que você é o professor de uma disciplina específica. Sai ano, entra ano, sai hora, entra hora, você ensina aquela disciplina. Mas você, um ser do dever, que tem de fazer de forma competente aquilo que lhe foi ordenado, a fim de sobreviver, faz o que deve fazer para passar na avaliação. A disciplina é o deus a que você e os alunos devem se submeter.
O pressuposto desse procedimento é que o saber é sempre uma coisa boa e que, mais cedo ou mais tarde, fará sentido. Especialmente os adolescentes, movidos pela inteligência da contestação, perguntam sobre o sentido daquilo que têm de aprender. Frequentemente os professores não sabem dar respostas convincentes. “Para que aprender o uso dessa ferramenta complicadíssima se não sei para que serve e não vou usá-la?” A única resposta é: “Tem de aprender porque cai no vestibular” – resposta que não convence por não ser inteligente mas simplesmente autoritária.
O que está pressuposto, em nossos currículos, é que o saber é sempre bom. Isso talvez seja verdade abstractamente. Mas, nesse caso, teríamos de aprender tudo o que há para ser aprendido – o que é tarefa impossível. Quem acumula muito saber só prova um ponto: que é um idiota de memória boa. Não faz sentido aprender a arte de escalar montanhas nos desertos, nem a arte de fazer iglos nos trópicos. Abstractamente todos os saberes podem, eventualmente, ser úteis. Mas, na vida, a utilidade dos saberes se subordina às exigências práticas do viver. Como diz a Cecília, o mar é longo, a vida é curta.
Eu penso a educação ao contrário. Não começo com os saberes. Começo com a criança. Não julgo as crianças em função dos saberes. Julgo os saberes em função das crianças. É isso que distingue um educador. Os educadores olham primeiro para o aluno e depois para as disciplinas a serem ensinadas. Educadores não estão a serviço de saberes. Estão a serviço de seres humanos – crianças, adultos, velhos. Dizia Nietzsche: “Aquele que é um mestre, realmente um mestre, leva as coisas a sério – inclusive ele mesmo – somente em relação aos seus alunos” (Nietzsche, Além do bem e do mal).
Eu penso por meio de metáforas. Minhas ideias nascem da poesia. Descobri que o que penso sobre a educação está resumido num verso célebre de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso. Viver não é preciso”. Navegação é ciência, conhecimento rigoroso. Para navegar, barcos são necessários. Barcos se fazem com ciência, física, números, técnica. A navegação, ela mesma, faz-se com ciência: mapas, bússolas, coordenadas, meteorologia. Para a ciência da navegação é necessária a inteligência instrumental, que decifra o segredo dos meios. Barcos, remos, velas e bússolas são meios.
Já o viver não é coisa precisa. Nunca se sabe ao certo. A vida não se faz com ciência. Faz-se com sapiência. É possível ter a ciência da construção de barcos e, ao mesmo tempo, o terror de navegar. A ciência da navegação não nos dá o fascínio dos mares e os sonhos de portos onde chegar. Conheço um erudito que tudo sabe sobre filosofia, sem que a filosofia tenha jamais tocado sua pele. A arte de viver não se faz com a inteligência instrumental. Ela se faz com a inteligência amorosa.
A palavra amor se tornou maldita entre os educadores que pensam a educação como ciência dos meios, ao lado de barcos, remos, velas e bússolas. Envergonham-se de que a educação seja coisa do amor – piegas. Mas o amor – Platão, Nietzsche e Freud o sabiam – nada tem de piegas. Amor marca o impreciso círculo de prazer que liga o corpo aos objectos. Sem o amor tudo nos seria indiferente – inclusive a ciência. Não teríamos sentido de direcção, não teríamos prioridades. A ciência desconhece o amor – tem de desconhecer o amor, para ser ciência. Tem de ser assim para que ela seja a coisa eficaz que é. Mas a vida, toda ela, é feita com decisões e direcções. E essas direcções e decisões são determinadas pela relação amorosa com os objectos. Se assim não fosse, todas as comidas seriam indiferentes; todas as mulheres seriam iguais; seria o mesmo ficar com esse ou aquele homem; e as músicas, os quadros e os poemas teriam o mesmo sem-gosto.
A inteligência instrumental precisa ser educada. Parte da educação é ensinar a pensar. Mas essa educação, sendo necessária, não é suficiente. Os meios não bastam para nos trazer prazer e alegria – que são o sentido da vida. Para isso é preciso que a sensibilidade seja educada. Fernando Pessoa fala, então, na educação da sensibilidade. Educação da sensibilidade: Marx, nos Manuscritos de 1844, diz que a tarefa da história, até agora, tem sido a de educar os sentidos: aprender os prazeres dos olhos, dos ouvidos, do nariz, da boca, da pele, do pensamento (Ah! O prazer da leitura!). Se fôssemos animais, isso não seria necessário. Mas somos seres da cultura: inventamos objectos de prazer que não se encontram na natureza: a música, a pintura, a culinária, a arquitectura, os perfumes, os toques. No corpo de cada aluno se encontram, adormecidos, os sentidos. Como na estória da Bela Adormecida… É preciso despertá-los, para que sua capacidade de sentir prazer e alegria se expanda. Todos os objectos de prazer que foram dados pela natureza e acumulados pela cultura se encontram à sua disposição. Eles sentirão seu prazer e sua alegria se não tiverem sentidos castrados. Há, assim, uma outra tarefa para o professor, além do ensino abstracto das disciplinas: é preciso que ele se transforme num mestre de prazeres… Foi o que aconteceu com Roland Barthes, ao chegar ao fim da vida."
Ilustração: Google Imagens.
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