É esta uma noite ímpar, pela soma de contrastes que a vestem. Por um lado, os galopantes ventos cruzados que derrubam árvores e travam aeronaves. Por outro, a lua cheia, viajando fagueira “como a alma de um justo”, entra-nos em casa e na mente em acenos de paz e cânticos de Páscoa. Dormem no mesmo berço nocturno, as bombas suicido-assassinas dos aeroportos e os prenúncios de uma Ceia, em cuja mesa pão e vinho se misturam com o sabor do abraço e do perdão. E é nesta Ceia, chamada a Última, que debruço hoje o meu olhar para descobrir-lhe a ementa e desvendar-lhe o significado. Espero não ferir susceptibilidades e arquétipos interpretativos que sucessivas gerações nos transmitiram ao ritmo imponderado do tradicionalismo religioso.
Que sentido maior terá o demonstrativo “Isto” no contexto da narrativa?
O conhecido e abalizado teólogo Bento Domingues refere, na sua crónica de domingo passado, que a Última Ceia fica toda iluminada com o gesto simultâneo de J.Cristo quando decidiu lavar os pés aos comensais, pescadores e pecadores, seus amigos desde a primeira hora – uma atitude de intensa carga afectiva e de partilha igualitária entre todos, sublinhando a moralidade global daquela Ceia: “Também é Isto que deveis fazer uns aos outros”. (Mt.26,26; Jo.13,1-17).
Os primeiros cristãos traduziram à evidência o mandato do Mestre: “Partiam o pão em casa e comiam juntos com alegria e singeleza de coração…Tinham tudo em comum: até vendiam as suas propriedades e fazendas e repartiam com todos, conforme as necessidades de cada um”.(Act.2, 44-46). Eis a genuína interpretação da Ceia do Senhor e do subsequente Lava-pés, fielmente vivenciada pelos que receberam em primeira mão a narrativa do Cenáculo. Para eles, interessavam menos os rituais do que as acções concretas de solidariedade no terreno, demonstração dinâmica da sua fé na Eucaristia – a “Boa Graça”, etimologicamente.
Assim não entenderam os séculos posteriores e os cristãos, doutrinados e dominados por uma hierarquia crescente em poder, luxo e majestade. Passou-se a privilegiar o rito em prejuízo da seiva interior que lhe dava sentido e actualização. Fechou-se a Ceia no círculo apertado do formalismo litúrgico da “Consagração”. Depois, ergueram-se camarins e baldaquinos, cinzelaram-se sacrários, âmbulas e custódias, algumas delas de ouro precioso (lembremo-nos da sumptuosa custódia do ourives quinhentista Mestre Gil Vicente) e guardou-se o “Senhor do Universo” numa perfeitinha hóstia circular, bem segura numa prisão que, por ser dourada, não deixa de ser prisão. E chegou-se a esta obtusa contradição: enquanto o Mestre e os primeiros cristãos tomavam o pão da Eucaristia para abrirem caminho ao exterior, aos que viviam nas periferias, a Igreja usa prioritariamente a Ceia do Senhor para prendê-lO nas áureas teias do solenes rituais.
Não está em causa o fenómeno da “transubstanciação” (um vocábulo dogmático que os crentes pouco entendem) mas a inversão dos factores-valores da equação entre os meios e os fins, entre o ritualismo e vida. Se alguém houve que repudiou o verniz dos cerimoniais e defendeu acerrimamente os valores da fé viva e actuante, esse alguém foi o nosso Líder e Mestre, atraindo, por isso, contra si a fúria dos sumos-sacerdotes sentinelas da religiosidade formalista oficial.
Em síntese, todo o equívoco resume-se à frágil distinção entre significante e significado. Quanto menos evoluído é um povo, mais necessidade tem de significantes - repetidos, redundantes, asfixiantes até. Pelo contrário, um povo de olhos límpidos, não afectados por sombrias cataratas ideológicas, depressa intui o significado essencial dos gestos e tradu-lo em expressões factuais, prova transparente da sua crença.
Quinta-feira Sã e Santa, porque criadora de solidariedades necessárias, dos perdões consensuais, embora tantas vezes doridos e sofridos, mas no fim sempre geradores de prazer e militância face ao futuro!
Não há Eucaristia sem Abraço!
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Seria “divertido” e produtivo se alguém quisesse desenvolver um tema que tivesse mais ou menos este título: “Ao fim de 50 anos de embargo a Cuba, o presidente adventista Obama visitou aquele Povo. Na Madeira, faltam só oito anos para a Diocese levantar o embargo decretado desde 1974 à comunidade cristã e católica, chamada Ribeira Seca”.
Viva Quinta Feira Sã, Saudável, Santa!
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23.Mar.16
Martins Júnior
NOTA:
Texto publicado pelo Padre Martins Júnior no seu blogue Senso e Consenso.
http://sensoconsenso.blogspot.pt/2016/03/o-que-e-isto-pao-e-vinho-sobre-mesaem.html#gpluscomments
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