"O André não gostava da escola. Para ele estar ali, obrigado a fazer o 9º ano, não fazia sentido. Do que ele gostava era do trabalho no campo com o pai. As mãos rudes que se espetavam, desesperadas, nos cabelos desalinhados quando tinha que responder a uma pergunta, eram um sinal disso. O André gostava de se levantar cedo, tratar dos animais, cavar a terra. Tinha as unhas sujas e lascadas, calos nas mãos e alguma sujidade que uma lavadela rápida não conseguia tirar; e nem sempre as roupas estavam melhores; os livros e cadernos sofriam alguns maus-tratos, os materiais ficavam muitas vezes esquecidos em casa e as grandes passadas do André faziam-no entrar sempre desastradamente, na sala ou outro lugar que não fosse o espaço exterior de horizontes abertos. A mãe do André não sabia ler e o pai mal assinava o nome. Não percebiam para que era a escola quando o filho podia ajudar muito mais em casa, nos trabalhos pesados da pequena quinta. E com dificuldade, sem uma alternativa à vista, o André esforçava-se desesperadamente para acabar aquele 9º ano, desenhado de igual modo para todos. O André era meu aluno e eu preocupava-me com ele, com os seus modos desastrados, quase primitivos, uma força da natureza. Tentava sobretudo que ele não perdesse a esperança, que terminasse o 9º ano. Na mesma escola andava a irmã mais nova. Um dia descobri quem era. Fiquei espantada. No trânsito apressado entre salas e corredores já tinha reparado naquela aluna delicada, cuidada e sempre sorridente. Mais admirada fiquei quando descobri que era irmã do André. Soube depois que era uma excelente aluna que terminava 9º ano com 5 a tudo. A Teresa era em tudo o contrário do André. Delicada, harmoniosa, cuidada na sua aparência, sempre sorridente, mostrava a sua felicidade de estar na escola. Um dia na cantina sentou-se na minha mesa. Esperou que eu terminasse de comer para se levantar. Entretanto falou-me dos seus sonhos, das suas expectativas. Tinha a certeza que ia conseguir uma bolsa de que a directora de turma lhe falara, ia continuar a estudar, queria fazer medicina (era uma barra a matemática e biologia) e os olhos brilhavam-lhe de entusiasmo. Já tinha conseguido convencer os pais e sabia que ia continuar a manter a sua média elevada. No início do ano seguinte não vi a Teresa. Perguntei ao André que me disse que ela estava doente. Foi só em Janeiro que a voltei a ver. Trazia um braço engessado, estava triste e pensativa. Os olhos tinham perdido o entusiasmo e segurança que lhes conhecia. Contou-me então como, numa aula de Educação Física, num lançamento de basket (em que era exímia) tinha caído e fracturado o braço. Tinha sido operada no Hospital e alguma coisa correra mal. Fizera segunda operação e estava à espera. Não houve reclamações dos pais nem na escola nem no Hospital. Não era o tipo de coisas que os pais soubessem fazer, reclamar junto de instituições. Quando voltei a falar com a Teresa era o fim do ano. O braço direito estava efectivamente ligeiramente defeituoso. Mas a mágoa da Teresa era outra: já não fazia lançamentos surpreendentes em Educação Física. O professor agora classificara-a com 13. A média em que ela tanto apostara tinha fugido. E com ela os seus sonhos e projectos. O acesso à bolsa estava comprometido e mais ainda a entrada em medicina. E que disse o professor, meu colega, quando lhe coloquei a questão? Educação Física é uma disciplina como qualquer outra, se não executa no máximo não pode ter o máximo... Não, não tem que se preocupar com as diferentes especificidades de cada aluno. Isso da escola inclusiva é para outras situações, não para situações como esta. E a Teresa não vai para medicina? Paciência. Paciência disseram os pais, já era o destino…"
Texto publicado no Jornal A Página da Educação, nº 184, página 48, Dezembro de 2008.
Comentário:
Mantenho o que desde há muitos anos sublinho: a Educação Física não é uma disciplina igual às outras. Não é melhor nem pior, é diferente. Entendo que já deveria ter sido anunciada a sua "morte" e, no seu lugar, subordinada a outras características organizacionais e programáticas, deveria ter emergido a Educação Desportiva. Não se educam físicos, educa-se para a VIDA. E o desporto pode e deve ser um excelente meio para fazer despertar princípios e valores que à Escola e à família dizem respeito implementar.
Esta história contada pela investigadora Celestina Carvalho da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto é oportuna e vem ao encontro das minhas teses relativamente à vergonhosa situação de uma disciplina que não precisa de sistema de avaliação para ganhar importância no quadro da formação e importância social. Há muitos autores que já se debruçaram sobre esta matéria. Só que não coragem política para dar um novo rumo a uma disciplina que está, no mínimo, 50 anos atrasada. Simplesmente porque há, por aí, uma série de fundamentalistas da pedagogia que não conseguem ver o óbvio. E por este caminho não conseguem perceber que estão a afastar os alunos de uma prática para a VIDA (que é muito mais que doze anos de escola) interpretada com um bem cultural.
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